Boris Gucovski

A Via Crucis do Corpo, Clarice Lispector

A Via Crucis - Capa

Ao longo de 13 contos, Clarice renega com frequência a profissão em prol de pureza e clareza em sua busca por entendimento.

Clarice precisou pedir ao filho que não lesse este livro. Ao se permitir tamanho erotismo e honestidade intelectual, acabou tomada por vergonha. Mas eu espero muito que ele a tenha desobedecido, pois aqui encontraria a humanidade da mãe em sua forma mais pura e eterna. Não pode haver dádiva maior.

Talvez as seguintes perguntas surjam na mente do leitor: Existe desejo livre de autorrepressão? As pessoas dão valor excessivo à literatura? Como devo lidar com a morte se ainda sou viva? Em A Via Crucis do Corpo, a mulher, e não a autora, parte em busca dessas respostas.

E não é acidental a minha distinção autora/mulher. Ao longo de 13 contos, Clarice renega com frequência a profissão em prol de pureza e clareza em sua busca por entendimento. Quis compreender, entre outros, o prisma da sexualidade humana ("Miss Algrave") e a dicotomia escritora/pessoa ("O Homem que Apareceu"). É literatura, mas o leitor sai como se tivesse invadido seu diário.

Nos diversos contos que abordam o espinhoso assunto da sexualidade, Clarice investiga, por exemplo, como uma moralista torna-se prostituta. Explora ainda natureza doentia de relacionamentos não funcionais, como uma poligamia que termina em assassinato ou a idosa que é explorada pelo namorado adolescente. Escandaloso. Do jeitinho que eu gosto.

Além disso, nesta busca por entendimento, Clarice expõe um surpreendente baixo apego ao ofício de escritora. Em "O Homem que Apareceu", ao ser acusada de valorizar demais a literatura, corrige: "qualquer gato, qualquer cachorro vale mais que a literatura". Em outras palavras, o amor vem primeiro. Disse ainda que, mais importante que escrever (trabalhar), foi fazer a amiga com câncer sorrir após um comentário afetuoso.

É comovente e revelador ver Lispector sair de cena e ceder a máquina de escrever para Clarice, que ama, sente e teme. Via Crucis do Corpo é um livro honesto, brutal às vezes, que faz você se sentir em uma conversa telepática com a própria Clarice. Ela vai te oferece Coca-Cola ou café, pois tem dessas manias. Você aceita?