Boris Gucovski

Torto Arado (2017) - Resenha

Capa - torto

"Cada um dos capítulos de Torto Arado é como uma fotografia em preto-e-branco de homens e mulheres invisíveis"

Como a própria aragem da terra, paulatina na beleza dura do cotidiano, a colheita demora. Mas, certo como o nascer do sol, ela vem. Ao fim, respira-se fundo, debruça-se sobre o cabo da enxada e olha-se para trás para ver um inenarrável legado. Assim é Torto Arado.

Neste bestseller de Itamar Vieira Jr, acompanhamos, da infância à adultez, Bibiana e Belonísia, descendentes diretas de escravos libertos. Iniciamos numa manhã de curiosidade pueril, onde um acidente grotesco transforma a relação das duas irmãs. A partir daí, o leitor é convidado, com muita educação humilde, a documentar com uma máquina fotográficas – daquelas bem antigas – uma vida inteira trabalhando uma terra que não é sua, mas por direito deveria ser.

E não é esporádica minha alegoria da máquina fotográfica. Cada um dos pitorescos – e numerosos – capítulos de Torto Arado é como olhar uma fotografia em preto-e-branco de homens e mulheres invisíveis. Daquele que levanta cedo para arar a terra e caleja a mão, respira pesado e seca a testa incandescente. E boa parte dessas fotos traz a figura quase simbiótica de Bibiana e Belonísia ao fundo.

Assim, conforme registramos as meninas lutando para florescer na terra árida, fotografamos também outros personagens quase históricos e decerto inesquecíveis, como Zeca Chapéu Grande, Donana, Severo e Maria Cabocla, que conferem ainda mais desse sangue, dessa seiva quente com gosto de suor que amarela as páginas e irriga a terra que não lhes pertence e nunca poderia.

E quando sua coleção de fotografias se torna exposição internacional de arte, aquelas vidas se fazem visíveis. O leitor-autor caminha e olha com orgulho as fotografias ampliadas pelos corredores brancos da exposição. A bruta e delicada crueza da vida do sem-terra, do quilombola, da casa de barro, da injustiça, do assassinato, da escravidão, da fome e da dor que a alma vem a conhecer. Da vida como é, mas jamais deveria ser. Um registro que, certamente, criará raízes profundas.